"Vou à Bahia porque, se alguém fez o impossível para eu sair do país, foi Dado Galvão. Desde que filmou uma entrevista comigo em Havana, ele tem sido incansável. Mesmo quando me faltava esperança, ele a mantinha" YOANI SÁNCHEZ - FOLHA DE SÃO PAULO

Relato de viagem – jornalista Marina Valle

Marina Valle conversa com Yoani Sanchéz, senhora que se aproximou e sentou-se à frente de Yoani, José e Marina, durante a conversa, no parque Humboldt, Havana, Cuba.

Entrevistou Yoani Sanchéz em 3 de Junho de 2010.

Desenvolvo um estudo sobre os blogs de jornalismo independente em Cuba para a conclusão de uma pós-graduação em latu-senso em jornalismo cultural na instituição de ensino Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP, em São Paulo, SP, Brasil. O projeto leva o título “Generación Y e os blogs de jornalismo independente em Cuba”. Após leitura bibliográfica e análise de material sobre o assunto, chegou-se a uma segunda fase da pesquisa: a de campo. Buscava-se entender os métodos de desenvolvimento da produção jornalística de alguns blogueiros independentes cubanos. De que maneira esses blogueiros se organizam num país de repressão, de vigilância e cerco pesados sobre as movimentações contrárias à ideologia dominante? Era necessário saber mais sobre as estratégias desses blogueiros, verificar seu posicionamento no meio desse contexto. Ficam escondidos? Se disfarçam? Fogem das autoridades?

Seria, porém, muito difícil realizar uma pesquisa à distância com fontes cubanas. Quando se faz uma apuração, pesquisa ou entrevista sem grandes complexidades, o contato com as fontes ou com os entrevistados é feito usualmente via telefone, internet ou troca de emails. O direcionamento in loco até a fonte é sempre uma etapa posterior à primeira comunicação. Mas no caso do país em questão, cujo acesso das pessoas à internet é limitado, trocas de emails tornam-se difíceis e lentas. E conversas telefônicas, incluindo o fato de as linhas telefônicas também estarem sujeitas a monitoramento político, tornam-se, além de caras, perigosas, dependendo do que se fala.

Desembarquei em Cuba, com o objetivo de conversar com Yoani Sanchéz e outros blogueiros, para a elaboração da minha monografia. Tinha toda documentação em ordem: o visto de turista e o seguro de saúde obrigatório. Estava antes no México, de férias.


Meu marido e eu chegamos no aeroporto José Marti e desde o primeiro momento em Cuba, já pude notar como o país parou no tempo. Tivemos que fazer a conversão de câmbio no aeroporto. Perdemos dinheiro na conversão, porque não tinha me informado que seria melhor ter levado Euros, e não dólares americanos.

No país, circulam dois tipos de moeda: o peso cubano (conhecido como moeda nacional) e o peso conversível, ou CUC, dinheiro que circula no turismo e no mercado paralelo, infinitamente mais valorizado que a moeda nacional. Pior ainda, mais caro que o dólar - a moeda-base para se fazer câmbio no mundo inteiro. Um único CUC equivalia, naquele momento, a 0,89 centavos de dólar. Não parece mesmo lógico que o dólar, uma moeda forte, vale tão pouco nesta ilha cuja economia vive em frangalhos. Fiquei ainda mais zangada quando lembrei que a média das famílias cubanas vive com um pouco mais 20 CUC por mês.

Apesar disso, o primeiro dia em Cuba foi agradável e interessante. Pegamos um táxi para o centro de Havana. No caminho, percebe-se a pobreza e a estagnação econômica. Os “outdoors” da cidade, todos os anúncios eram propagandas do Estado. Algumas criticavam o imperialismo americano e a União Européia. Já se podia ver os famosos carros antigos pelas ruas de Havana. Nos hospedamos em um hotel da rede Habaguanex, grupo comercial estatal que é praticamente “dona” de toda Havana Vieja, o centro histórico e turístico – todo restaurado. Havana Vieja foi declarada Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco em 1982. Fiquei surpresa com as instalações, muito charmosas, com quarto grande e TV a cabo (com canais latinos e, pasme, americanos!).
Fomos dar uma volta em Habana Vieja. Entre prédios antigos, ruas estreitas e lindas praças, caminha gente de todo o tipo: crianças saindo da escola, jovens, senhoras pedindo esmola, famílias vendo a vida passar da porta de suas casas.
No dia seguinte, fui percebendo como o negócio do turismo em Cuba é um mundo à parte. Troquei alguns CUC por moeda nacional, pois precisava de moedinhas para ligar para Yoani Sanchéz e marcar um local para nos encontrarmos. Com o troco que sobrou em moeda nacional, tentei comprar algumas coisas. Quem disse que consegui? Parece existir um acordo que não se pode aceitar que turistas usem moeda nacional, mas somente em CUCs. No museu de Ernest Hemingway, tentei usar o troco de moeda nacional que tinha para pagar a entrada, mas não foi aceito. Quis saber o por quê, já que aqueles pesos também significavam dinheiro no país. A senhora, que estava de guarda do museu, simplesmente disse: “Não é permitido aceitar”. Isso nos leva a crer que criou-se esta moeda para explorar os turistas.
Mais tarde, fui até o Teatro Nacional verificar se haveriam naquela noite apresentações do internacionalmente famoso Balé Nacional de Cuba. Na tabela de preços, um detalhe me chamou a atenção: o preço dos turistas era diferente dos cidadãos. Inclusive o lugar de se sentar no teatro. Se houvesse apresentação naquela noite (só teria Sábado e Domingo), eu não poderia ter a chance de me sentar ao lado de um cubano e, quem sabe, discutir sobre dança clássica. Eu estaria separada numa área restrita, entre suecos, espanhóis ou australianos. Logo em seguida, tomamos um “Cocotaxi” (uma fusão estética motorizada de motocicleta e orelhão, de fibra de plástico) até a famosa sorveteria Copellia, para provar os seus tão falados “helados”. Notei que haviam umas quatro longas filas para se comprar sorvete. Estava prestes a desistir do sorvete quando notei que havia “um outro” ambiente, menor e bem mais tranqüilo, cujo guichê não havia fila e em cujas mesas se sentavam muitos loiros e mochileiros. Uma nova decepção: na sorveteria, os turistas também eram separados da “natureza social” de Havana.
Confesso que já tinha ouvido falar desse “apartheid” imposto entre cubanos e turistas. Quem já visitou o balneário turístico de Varadeiro diz que não há cubanos por lá, que eles são proibidos de circular por aquelas praias ou aproveitar a linda natureza daquele lugar. Irônico, pois aquelas praias são públicas, não é território privado.
Seguimos de táxi para o bairro de Miramar. Tinha um interesse por aquele bairro, pois Yoani Sánchez já o citara em seus posts – o bairro dos ricos e protegidos do governo. Lá se encontram as embaixadas e casas de altos funcionários do governo. O taxista, depois de ter se assegurado de que não forçávamos simpatia pelo regime, sentiu-se à vontade e soltou: “Estas são as casas de férias da máfia”.

A regra número um é manter-se com a boca fechada. Vale a regra “não gosto, não aturo o regime, mas fico quieto”. Depois de sacar de que lado você está, as pessoas vão se abrindo. Aos poucos, revelam suas insatisfações, seus desejos. E infelizmente, a maioria está sempre presa ao conformismo.

De volta ao hotel, vi um pouco de televisão cubana. Fora as telenovelas brasileiras, muito populares por lá, o restante da programação tem conexão com a agenda de imprensa do governo. Rolava um programa tipo mesa de debate, cujo tema era o direito das crianças e adolescentes. Comandados por um apresentador-mediador, uma funcionária do governo dominava a discussão com tema das crianças migrantes, levadas pelos pais para fora do país. Dizia ela, que estas crianças passam por estresses, solidão e falta de recursos depois que seus pais são enviados novamente para seus países de origem.

O discurso político não está presente somente nos meios de comunicação controlados pelo governo, mas até mesmo, curiosamente, nas artes plásticas. Fomos visitar o Museu de Belas Artes de Arte Cubana e entre tantas obras magníficas, muitas que lembravam nossa arte moderna da semana de 22 (Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, etc), havia muitas obras que exaltavam a ideologia revolucionária. Como a de Aldo Menendez, “El Primer 26 en La Havana” e a de Raúl Martinez, da serie “homenajes”, com uma imagem plástica de bricolagem de Fidel Castro.

Outro museu que visitamos foi o da Revolução, localizado no palácio nacional, sede de todos os governos, de 1920 a 1965, desde os tempos de colônia. A exibição do museu é extremamente pobre no sentido estético. É organizado e apresentado pela didática que próprio regime conta sua história, tendo início na “Cuba assolada” pela ditadura de Batista, com fotos horripilantes de prisioneiros torturados e coisas do tipo. A exposição segue apresentando os fatos por meio de fotos e objetos, e termina exaltando as glórias de um governo socialista, entre fotos de crianças sorridentes em escolas, médicos e dentistas felizes.

Combinei por telefone com Reinaldo Escobar, marido de Yoani, de me encontrar com Yoani no dia 3 de Junho, às 16 hrs, no hotel em que estava hospedada em Havana Vieja. Era meu terceiro e último dia em Cuba. Eram 15:50 quando chegamos do almoço e, no saguão do hotel, já havia uma movimentação excessiva. Subo ao quarto e tomo um banho. O telefone toca. A funcionária do hotel diz que eu tenho uma visita. Desço, vejo Yoani com uma moça na rua, esperando por mim fora do hotel. Cumprimento Yoani, dou-lhe um abraço. Ela me apresenta sua irmã, que a acompanha sempre que Reinaldo não pode fazer estar ao seu lado. Reinaldo estava em uma reunião de pais na escola do filho. A irmã de Yoani nos deixa, parte caminhando, e nós entramos no hotel. Convido Yoani para subir, mas o funcionário do hotel não permite. Pede a Yoani seu documento de identidade. Depois de se certificarem quem era minha “famosa” convidada, não a deixam subir. Tampouco Yoani gostou da idéia, ela preferia que conversássemos às claras, como sempre faz com todos que a procuram.
Nós nos sentamos no saguão do hotel, quando começaram os primeiros flashes. Comecei a notar essa movimentação aos poucos. Caiu então a ficha de estávamos sendo observados por uma gente estranha e a sensação de adrenalina começou a tomar conta de mim. Yoani percebeu antes de nós que tínhamos companhia. Era a polícia política do Comandante. Nada fardados, porém. Um senhor de cor, com óculos escuros, sentado nas mesinhas próximas às nossas, nos encarava. Na porta do hotel passava de um lado para o outro (como de vigia) um senhor de óculos escuros, com uma camisa xadrez. Yoani e eu decidimos que seria melhor sairmos para conversar na rua, em qualquer local público, ao ar livre. Antes disso, ela me pediu para usar a internet do hotel e se poderia ficar alguém ao lado dela conversando, para evitar qualquer aproximação da polícia. Eu disse que sim, que ela poderia usar a internet do hotel. Os funcionários do hotel, felizmente, não criaram problemas ao ver que Yoani fazia o uso do computador do hotel. Naquele computador, Yoani carregou um vídeo, demorava muito o processo. Enquanto isso, eu retornava ao quarto para buscar minha bolsa, já que iríamos sair.

Eis que na porta do meu quarto que deixei entreaberta (pois só ia buscar a bolsa) aparece uma senhora de cabelos vermelhos, cacheados e curtos, de bermuda xadrez, sandálias papete tipo “turista” e pochete. Ela me pergunta se eu conheço Yoani Sanchéz. Eu digo que sim, que a conheço da Internet, pelo seu blog. Eu retruco e pergunto o mesmo. A senhora diz que também a conhece da Internet, que também gosta dela. E no mesmo instante ela vai embora e me deixa. Eu desço. Yoani ainda esperava pelo carregamento do vídeo.

Yoani, mulher valente e ao mesmo tempo pacífica, nos disse que sua defesa contra a repressão é, justamente, sua transparência. Achou melhor que fóssemos conversar fora do hotel. Saímos eu, meu marido e Yoani. Nos sentamos para conversar em um banquinho de uma pracinha próxima dali. Minutos depois, estaciona uma van com insulfilme preto. Agora já um pouco mais nervosa, começo a apressar a conversa. Aqueles mesmos sujeitos que estavam no hotel apareceram. O homem de camisa xadrez tirava fotos nossas. Yoani, acostumada com o “tumulto silencioso” causado pela sua presença, age normalmente, e com humor, chega até a fazer brincadeiras e sorrir para as fotos.

A tranqüilidade e o equilíbrio de Yoani me acalmaram em certo ponto, fez com que eu não desistisse daquela entrevista e continuasse meu trabalho. Lá conversamos durante 30 minutos, que estão devidamente registrados e que foram vividos intensamente. Sentimos na pele o que Yoani chama de “paranóia cubana” e passamos a ficar atentos a tudo o que nos rodeava.
Enquanto conversávamos, meu marido, esperto, notou que um dos policiais havia colocado algo no carrinho de mão de uma velhinha que se aproximou e se sentou no banquinho justo à nossa frente. Havia um asilo de idosos em frente à pracinha. Meu marido nos alertou e parou de gravar a entrevista. Não sei se já estávamos intoxicados pelo vírus da “perseguição”, mas o fato é que, para nós, estava claro: a inocente senhora estava gravando nossa conversa. Ao ver que nós percebemos sua presença ali à nossa frente, a velhinha se retirou em seguida.

Depois do papo, fomos ao encontro de Reinaldo Escobar e nos sentamos num café próximo ao hotel. Meu marido voltou ao hotel para buscar os presentes que havíamos trazido para o casal. Entregamos os presentes, conversamos rápido. E todos nós achamos melhor ser breves e nos despedimos. Lembro-me que a última coisa que disse a Yoani Sanchéz foi para ela perseverar na sua luta e continuar escrevendo.

Termino este relato desta experiência como viajante, pesquisadora e jornalista (às escondidas, de turista) em Cuba. Pretendo agora revelar esses e outros detalhes com maior precisão na minha monografia de pós-graduação. Em certo momento, eu cheguei a ficar com muito medo e desistir dessa aventura. Mesmo passando por momentos de tensão durante e depois de meu encontro com Yoani Sanchéz, não me arrependo de ter ido encontrá-la. Espero que tudo isso sirva de testemunho e conhecimento dessa realidade cubana. E que eu possa também mostrar a todos a perseverança e a coragem dessa mulher de espírito livre, que ali nada mais faz do que lutar por um dos mais elementares direitos: a liberdade.

Enviado por e-mail (Creditos: Marina Valle e José Nantala Freire)